Para conseguir os flagrantes, viajamos para cidades do Sudeste, do Centro-Oeste e do Nordeste. Encontramos resíduos médicos queimados, sem tratamento, lixo hospitalar enterrado em uma vala comum.
Uma reportagem especial mostra um escândalo que ameaça a saúde pública, causado justamente por quem deveria cuidar dela.
O repórter Maurício Ferraz denuncia uma ameaça à saúde pública e encontra uma grande quantidade de seringas e agulhas em lixo comum. São áreas de alto risco de contaminação, por onde passam muitas pessoas e animais. Para conseguir os flagrantes, viajamos para cidades do Sudeste, do Centro-Oeste e do Nordeste. Encontramos resíduos médicos queimados, sem tratamento, lixo hospitalar enterrado em uma vala comum.
Na maior cidade do Brasil, uma denúncia grave: lixo hospitalar misturado com lixo comum no Hospital São Paulo, um centro de referência na rede pública da capital paulista. Em um mês de investigação jornalística, flagramos todo o caminho da irregularidade: da origem, nos hospitais, ao destino final, nos lixões.
Em Campo Grande, no Mato Grosso do Sul, o lixo do hospital regional, o maior da rede pública do estado, fica em um depósito, onde há resíduos do Grupo A. De acordo com a Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), lixo do Grupo A é o que apresenta risco de infecção pela possível presença dos chamados agentes biológicos - ou seja, vírus e bactérias.
O caminhão roda cerca de 10 quilômetros, entra no lixão e joga tudo lá, sem nenhum tratamento.
Nós fomos conferir e encontramos frascos de remédios e seringa. Um catador afirma: “jogaram lixo residencial para tampar o lixo hospitalar”.
Outro caminhão descarrega material hospitalar. Os funcionários da empresa usam máscaras. Um córrego passa dentro do lixão de Campo Grande, e há animais por todo lado.
Mostramos as imagens para o professor Arlindo Philippi Júnior, da Faculdade de Saúde Pública da Universidade de São Paulo (USP). Ele diz que o risco de contrair doenças não se limita aos catadores. Bactérias e vírus podem ser levados por insetos e animais domésticos.
“Se ele entra na sua casa, há algum risco de ele levar aquele tipo de contaminante para esse seu espaço doméstico. Existem estudos epidemiológicos mostrando os problemas de saúde relacionados à questão da disposição inadequada de resíduos”, aponta Arlindo.
A empresa que faz a coleta do lixo hospitalar em Campo Grande disse, por telefone, que foi a prefeitura que indicou para onde os resíduos devem ser levados. Segundo o secretário de obras, o problema será resolvido até o fim do ano, com a construção de um aterro. “Vai existir a usina de beneficiamento de lixo hospitalar, de acordo com as normas da Anvisa, de todas as normas que envolvem isso”, afirma João Antonio de Marco, secretário de obras de Campo Grande.
Em Santo Antônio do Descoberto, em Goiás, a 45 quilômetros de Brasília, o lixo dos 61 mil habitantes vão para um lixão que fica praticamente dentro da cidade. Flagramos crianças e adolescentes trabalhando. Um menino de 11 anos ajuda os funcionários da prefeitura a descarregar o lixo. Registramos o momento em que um caminhão da prefeitura chega, com lixo comum e lixo hospitalar, tudo junto.
No meio dos resíduos hospitalares, encontramos muitos cachorros. “Eu posso te garantir que não é lixo proveniente da Secretaria Municipal de Saúde, ou seja, dos postos de saúde bem como do hospital”, explica secretário de Saúde, Geraldo Lacerda.
Não foi o que constatamos no lixão. No local, não encontramos nenhum papel de clínica particular, só do hospital da prefeitura. “Vou comunicar ao prefeito e pedir à Policia Civil que investigue para saber de onde está vindo esse lixo”, diz Geraldo Lacerda.
No Brasil, a maior parte do lixo hospitalar vai parar em lixões. “Cerca de 60% dos resíduos de saúde coletados hoje são descartados de maneira inadequada, em locais impróprios, trazendo um grande problema, um grande risco à saúde pública", explica o diretor executivo da Associação Brasileira de empresas de Limpeza Pública, Carlos Silva Filho.
Nossa equipe registra outro flagrante em Luziânia, Goiás, também no entorno de Brasília, com 160 mil habitantes. O Instituto Médico Legal da cidade atende oito municípios da região. Segundo os catadores do lixão, uma vez por semana chega o lixo do IML. “É ponta de agulha, calça, camisa, calçado”, conta Valdevino Rodrigues.
Também encontramos muito resíduo de hospitais e clínicas. No local, havia ainda o filtro usado em sessões de hemodiálise. Encontramos também uma grande quantidade de seringa e agulha. O material é infectante, só que é jogado junto com o lixo comum. A máquina vem e mistura tudo.
Sem saber que era gravado, um funcionário do hospital municipal de Luziânia confirma.
Fantástico: Fica tudo misturado?
Funcionário: Tudo misturado.
Fantástico: Inclusive de cirurgia, de centro cirúrgico?
Funcionário: Tudo. E depois vai lá para o lixão.
À noite, o risco de se machucar é bem maior. No meio do resto de lixo hospitalar, tem várias agulhas, e o catador fica bem próximo, sem luva, sem nenhuma proteção.
Entre os resíduos hospitalares, há um plástico considerado valioso. “É a chamada mangaba branca. É o produto mais caro que tem aqui”, conta um catador. Ele revela que vende a R$ 2 o quilo e quem compra são as empresas de reciclagem.
As normas de saúde proíbem que esse tipo de material seja reciclado sem antes ser desinfectado. Para ser reciclado, o plástico é derretido. Esse processo elimina a contaminação. “O resíduo é submetido a um processo de altas temperaturas. Nessas altas temperaturas, as bactérias e os vírus são exterminados”, diz o diretor executivo da Abrelpe, Carlos Silva Filho.
“O resíduo já tratado está triturado e não permite a reutilização na função original dele. Está completamente descaracterizado”, aponta diretor da empresa de tratamento de resíduos, Celso Guido Braga.
“A coleta do lixo hospitalar é separadamente. Provavelmente, por falta de equipamento. O nosso trator ficou de 10 a 15 dias estragado e ficou fora do lixão. Pode ter acontecido de ter sido misturado”, declara o secretário de Meio Ambiente de Luziânia, Télio Rodrigues.
Sobre o lixo do IML, o secretário de Meio Ambiente de Luziânia diz que não tem o que fazer: “Infelizmente, o único local para acomodar o lixo é irregular”.
Agora vamos para o Sudeste e para o Sul do Brasil. No mês passado, em Tapejara, no Paraná, a polícia descobriu um depósito clandestino com quase 100 toneladas de lixo hospitalar. A empresa que armazenava os resíduos foi multada em R$ 150 mil.
Também no mês passado, um caminhoneiro foi preso em flagrante quando descarregava lixo hospitalar em Belford Roxo, no Rio de Janeiro. “Peguei nos hospitais”, revela o motorista.
Perto do lixão há um rio. “É um crime ambiental pertinente a essa conduta é punido com reclusão de um a quatro anos. Está sendo alimentado com investigação que pretende estabelecer quem está se aproveitando do dinheiro público que deveria ser investido ao descarte regular desse lixo hospitalar”, afirma o delegado Fábio Pacífico.
Em nota, a prefeitura de Belford Roxo disse que não autoriza o despejo de lixo hospitalar no aterro e que está averiguando as irregularidades. “Não deve chegar em lixões. O resíduo deve chegar em aterro sanitário devidamente e previamente tratado e acondicionado”, afirma a gerente de tecnologia em serviços de saúde da Anvisa, Diana Carmem Oliveira.
Queimar resíduos hospitalares apenas com álcool comum não é suficiente para eliminar a contaminação. Mas foi o que nossa equipe encontrou no Nordeste, em Itabaiana, no estado de Sergipe, com 86 mil habitantes. “São coisas que acontecem às vezes, que fogem da gente, mas a gente tem a obrigação de corrigir”, declara o prefeito de Itabaiana, Luciano Bispo.
Foi em Aracaju, a capital sergipana, que flagramos lixo hospitalar sendo enterrado, sem nenhum tratamento. Registramos tudo, passo a passo. Primeiro, os resíduos saem do Hospital Estadual de Urgência, um dos principais de Sergipe. Depois, tudo é jogado no lixão da cidade. “Totalmente ilegal. Não existe licença dos órgãos ambientais responsáveis e é uma atividade que está se tornando pior e medidas precisam ser adotadas”, aponta a promotora de Justiça Adriana Ribeiro Oliveira.
Em nota, a empresa que faz a coleta do lixo hospitalar em Aracaju disse que foi contratada apenas para recolher e transportar os resíduos até o aterro. O lixão de Aracaju fica a cerca de 4,5 quilômetros do aeroporto. A lei determina que, por segurança, aterros e aeroportos devem ficar separados por pelo menos 20 quilômetros.
Nossa equipe sobrevoou a área e viu o perigo de perto. Há muitos urubus. Desde 2005, o Ministério Público pede o fechamento do lixão. Desse período até agora, houve 26 colisões entre aviões e aves na região. Só este ano, foram 12. A prefeitura de Aracaju diz que tem um projeto pronto de um novo aterro, mas falta a licença ambiental.
A presidente da Empresa Municipal de Serviços Urbanos, Lucimara Passsos, afirma que, se o lixão for fechado, não tem onde por lixo.
“O que não dá para permanecer são as duas situações no mesmo local. Ou fecha o aeroporto ou fecha o lixão”, afirma o promotor de Justiça Carlos Henrique Siqueira Ribeiro.
O destino agora é São Paulo. Durante a apuração dessa reportagem, nossa equipe esteve em cinco dos principais hospitais públicos da capital paulista. Encontramos irregularidades no Hospital São Paulo, um dos mais importantes da rede pública, ligado à Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).
Em uma área, fica o lixo contaminado, que depois é recolhido em caminhões próprios. Até então, está tudo aparentemente correto. Já no depósito de lixo comum, havia um saco com líquido, aparentando ser sangue.
Nossos produtores conversam com um funcionário da limpeza do Hospital São Paulo. Eles mostram o soro sendo descartado no lixo comum. E o funcionário diz está surpreso.
“Ele tem características de lixo hospitalar. Ele tem seringas e cateteres. Não deveria estar no lixo comum”, aponta o professor Arlindo Philippi Junior, da Faculdade de Saúde Pública da USP.
Procuramos a direção do Hospital São Paulo. Em nota, disse que não existe descarte de lixo infectante com o comum e que esse tipo de resíduo é acondicionado em local apropriado e isolado.
Diante de tantos riscos para a saúde pública, qual seria a solução? Para o Ministério do Meio Ambiente, a nova Política Nacional de Resíduos Sólidos, que entrou em vigor em dezembro passado, pode ajudar.
Até 2014, os lixões devem ser substituídos por aterros sanitários devidamente organizados e fiscalizados. “É um problema histórico que, para ser resolvido, vai levar alguns anos. Certamente, há contaminação do solo, do subsolo e do meio ambiente de uma forma mais geral. Portanto, é um problema ambiental bastante grave”, destaca o secretário de Recursos Hídricos e Ambiente Urbano do Ministério do Meio Ambiente, Nabil Bonduki.
Nenhum comentário:
Postar um comentário